poemas imperfeitos

É mesmo disso que se trata, uma incursão temerária, para não dizer inconsciente, pela poesia...

 

I. Profecia

 

Senta-te, pega na folha e escreve.

Liberta o espírito, torna-te leve!

Agarra a caneta como uma espada,

rasga a folha como terra lavrada.

Salta sobre as nuvens, espora o corcel,

retrata o teu mundo com tela e pincel,

sobe à montanha e solta o grito mudo.

Sobretudo, escreve! E escreve sobre tudo.

 

Serás argonauta, músico, pintor,

guardador de sonhos, mágico, escritor,

malabarista ou piloto aviador,

rei de copas, ás, explorador.

Serás o que quiseres que te faça ser maior!

 

Predigo o futuro como um profeta:

serás Homem… e talvez poeta!

 

Oeiras, julho de 2010

 

 

II. Advento

 

O nevoeiro voltou!

Difusas, as cores e as formas,

sob um véu esbranquiçado,

misturam-se entre si

como o solo que foi arado.

 

Procuro… procuro-me!

Como quem vê no espelho d’água

um reflexo de si distorcido,

por serenas e curtas ondas,

do tempo que já foi já vivido.

 

Então olho de frente

o futuro impreciso

e sinto-me como um ilhéu:

percorrida toda a terra,

o mar é a ponte para o céu!

 

Caparica, julho de 2010

 

 

  

III. Ponto de fuga

Saí manhã cedo, rua fora.
A cal fere os olhos ensonados.
Mais despertos, os ouvidos atentos
sentem as andorinhas nervosas,
que esvoaçam pelos beirados.
Mistura-se o branco e o azul do céu
com a barra tingida a cal amarela.
Ecoa distante o latido de um cão
e o homem que ajeita a boina suada,
saúda a menina apoiada à janela.
Abre-se o postigo, alguém espreita!
Sai um perfume de olhar esquivo,
misto de fumeiro, chão encerado,
fruta madura e hortelã da ribeira.
Escapa-se o gato também furtivo.
As paredes da vila ficam para trás.
Despede-se com odor a laranjeira.
Desço a azinhaga em terra batida
que me leva à ponte sobre o Xarrama.
Mil cores e flores ladeiam a ladeira.
São João dormita numa capela,
ao som da água que pinga na fonte
e livre corre, contrariamente
à água que presa na barragem,
parece um mar no horizonte.
Sento-me à sombra sobre uma pedra
descansado, deleitado e contudo
aflige-me o barulho do silêncio
que interpela e me obriga a fugir
para Além do Tejo, de mim e de tudo.

 

Almada, julho de 2010

 

 

 

IV. O peso das palavras

 

Pesam os pensamentos?

Substância volátil, etérea…

Não, não podem ter peso!

Tão pouco as palavras são matéria

e, contudo, pesam tanto

que ao dizê-las ficas preso.

Prendem como grilhões

sobretudo quando são escritas!

Ao contrário do pensamento

as palavras escritas são vistas

com a tinta que as escreveu

sem qualquer branqueamento.

O pensamento é liberdade,

as palavras são da razão!

As palavras nunca são livres!

Só se ditas com o coração

pois se à razão obedeces,

muito pensas mas pouco dizes.

 

Caparica, julho de 2010

 

 

V. Quasar

Começa por ser ideia vaga, indefinida, imprecisa!
Como nuvem de matéria cósmica que explode e expulsa
um corpo que se individualiza.

Rodopia em espiral e em cada circunvolução,
ganha forma definida, arrefece, consolida-se,
em constante evolução.

A ideia, que começou por ser, dá lugar a um projeto.
Nasce, cresce, desencadeia nova revolução
e assim se expande o Universo!

Almada, julho de 2010

 


VI. Ocaso

Um céu vermelho sobre o poente,
cálido, antecede o crepúsculo
como se fosse enorme opúsculo
a anunciar o dia longo, quente.

Ralas cantam ruidosas, sem parar,
sentindo a terra que o Sol queimou.
Despedem-se do astro que as deixou
com a promessa de voltar a brilhar.

Adivinho a Lua em crescente
escondida do Sol que descansa.
Seu poder sobre a Terra é diferente!

Feiticeira, como uma mulher!
Brilha ténue e enquanto dança,
dócil, conquista tudo o que  quer.

Torrão, agosto de 2010

 


VII. Dalton

Como uma esfinge, olhas-me fixamente.
Insondável, misterioso, pregado ao chão,
estudas-me os movimentos atentamente.
Experimento-te. Movimento uma mão,
manuseio o cachimbo lentamente
e expulso fumo que sobe em cachão.
Impassível, pestanejas calmamente,
dominador da  situação.
Sorrio e tu olhas-me altivamente
como se a mim me faltasse a razão!

Pois eu sei que és inteligente,
ainda que digam que não,
que sou eu que sou indulgente
ao ser juiz do meu próprio cão.
Não te conhecem, evidentemente,
pois teriam outra percepção!
Não sabes línguas, naturalmente,
nem fazes uma subtracção,
mas vives a vida alegremente
e dás-te quanto queres com paixão.
Quando te acho impertinente
desarmas-me com gratidão
e estás  sempre  presente
nos momentos de solidão.

Haverá vida mais eloquente?
Obrigado por me ensinares, cão!

Torrão, agosto de 2010

 

 

VIII. Vitae

Buumm, bum

Buumm, bum

 

Hoje acordei a escutar-te!

Com o ouvido sobre um braço,

um bater cavo, distante

e esta mão que escreve,

indolente, sob o regaço.

Escuta-me, disseste!

Ouve-me pulsar, independente,

ouve-me o ritmo compassado

e sê livre como eu,

vive verdadeiramente!

 

Buumm, bum

Buumm, bum

 

Continuas a pulsar!

Em obstinadas bombadas

inflas-me de sangue e de vida,

como o vento que anima

as bandeiras desfraldadas.

E esta mão, agora desperta,

dá corpo ao pensamento.

Agita-se nervosa sobre o papel,

escreve versos, canta a vida

e entoa um agradecimento!

 

Buumm, bum

Buumm, bum

Buumm, bum

Buumm, bum

 

Caparica, novembro de 2010

 

 

 

IX. Ser ou não ser?


Se não fosse, mas parecesse,
se não quisesse, mas fosse,
se fosse, mas não pudesse,
seria, é certo, mas só parecendo!
Ainda assim, seria não sendo.

Almada, janeiro de 2011

 

 

 

X. Vendaval

 

Há dias assim.

Chove copiosamente,

na rua e cá dentro.

Do céu troam clamores

que abafam o grito mudo.

Quero sair, desesperadamente!

Mas Éolo, enraivecido,

não aplaca a tempestade,

varre a eito todo o mundo.

Como o lobo, pacientemente,

aguardo faminto a minha hora.

Olho p’la janela. A chuva a bater

abafa o ronco lento e profundo.

 

Amanhã será outro dia!

 

Caparica, fevereiro de 2011

 

 

 

XI. Aparição

Naquele dia não tinha pressa.
Deambulava sem destino,
à procura, talvez, de nada,
e livre da prisão do tempo,
chutava pedras pelo caminho.
Perdida entre folhas informes,
chamou-me uma flor amarela!
Fingi não ter escutado,
mas um pontapé certeiro
pousou a pedra ao lado dela!
Já não me pude esconder.
Aquele amarelo silvestre
exibia uma beleza esquiva,
mas queria que eu reparasse
e irrompia, bárbaro, agreste.
Uma flor do campo, tão bela?!,
deparei-me a pensar nisto
e a resposta deu-ma a flor:
A beleza está em quem vê,
não é atributo de quem é visto.
Quem julgaria uma flor capaz
de pensamento tão profundo!
Aproximei-me, senti-lhe o odor
e conclui que podia ser aquela
a mais bela flor do mundo.

Caparica, março de 2011

 

 

XII. Fiat lux

 

A luz envolveu-me…

Senti que não lhe podia resistir e abandonei-me!

Ela pegou-me, guiou-me a mão,

desvendou caminhos insondáveis

que me levaram exatamente onde queria estar,

embora não consiga precisar o lugar.

O dia raiara e era o sol que me acabava a noite…

 

Caparica, maio de 2011

 

 

XIII. Atropelo

Rápidas as palavras!

Mais ainda os pensamentos…

Mas tanta pressa para quê,

se tamanha velocidade

atropela a lentidão e mata a poesia

que há em certos momentos.

 

Caparica, maio de 2011

 

 

IV. Átomo

És inteiro?

Ainda que te falte alguém,

ou uma parte?

Ainda que digam que és louco,

varrido, perdido,

que não tens engenho nem arte?

 

Se consegues ver ao espelho

que tens espinha dorsal

e não vendes a alma ao diabo

por um punhado de dinheiro

ou pela prosápia boçal,

se conjugas o verbo ser, és inteiro!

 

Mas continua a procurar-te!

Para vencer o falaz e o tolo,

apronta renovadas artes

pois é no fogo que vais revelar-te!

E sê inteiro… porque que o todo

é sempre maior que a soma das partes.

 

Torrão, julho de 2011

 

 

XV. Liberdade

Hoje, avistei os golfinhos!

Vieram, inesperadamente,

nadando felizes, aos saltinhos,

enquanto olhava o mar fulgente.

A surpresa arrebatou-me!

Despertei do torpor quente,

uma brisa fresca encheu-me 

e ressurgi, subitamente!

Sob a luz ofuscante,

uma silhueta reluzente

rasgava o mar brilhante

e perseguia o Sol poente.

 

Mas era um grupo, afinal!

Um clã que em ordem unida

dançava compassado o ritual

celebrando a própria vida.

Por fim um, mais pequenino,

em absoluta liberdade…

Desejei tanto ser golfinho!

Deixar os calções na praia

e nadar, nadar, nadar à vontade!

 

Torrão, julho de 2011

 

 

XVI. Hipótese

Ao sul

brilha mais o sol,

o verão aquece,

a alma solta-se,

o corpo sua,

o horizonte perde-se,

a gente encontra-se.

E se eu abalasse?

 

Caparica, agosto de 2011

 

 

VII. Patologia

Contraímos uma labirintite!

O chão inclina-se para a direita

e na vertigem do desequilíbrio,

atropelamo-nos uns aos outros.

Safam-se poucos – a saída é estreita!

Para contrariar tão bruto declinar,

tomemos a antitoxina resistente.

Contrariemos resolutos para esquerda;

teremos de ser tanto mais decididos,

quanto mais se acentua a pendente!

 

Caparica, outubro de 2011

 

 

XVIII. Fado menor

Respirei fundo, peguei na guitarra.

Tangi as cordas num acorde maior,

seguiram-se mais dois e um sustenido.

Ao cantar a trova, senti-me o Bandarra

antevendo o futuro de um tempo menor...

E com solo vibrato, terminei num gemido.

 

Caparica, dezembro de 2011

 

 

XIX. Ficção não científica

E se um dia pudesse voar?!

Libertar-me da gravidade,

romper o ar com’o foguetão,

sair da órbita e voltar!

Depois, recostar-me à vontade

numa nuvem branca e fofa,

sorver com sofreguidão

gotas de água condensada,

ou fazer delas uma lupa

pr’analisar a luz refratada.

Ou então, desmaterializar;

decompor-me  em mil partículas!

Aparentemente vogam perdidas,

mas logo se vão reorganizar

dando forma e vida ao que sou.

Matéria e alma definidas,

pr’a ter o mundo noutro lugar,

poder ser quem quero ser

e estar onde eu quero estar.

 

Caparica, março de 2012

 

 

XX. Occidens

A minha barca avista-se ao longe…

a sair da barra.

Sempre que a vejo, de vela inflada,

sinto vontade de partir!

De bolinar, dobrar um cabo,

conquistar velhos mundos por descobrir!

 

Lisboa,  julho de 2012

 

 

 

XXI. Carro d’assalto

Encontrei-o numa gaveta, esquecido

entre papeis de cor gasta, bafientos,

escritos a tinta e aparo antigo,

marcas errantes de outros tempos.

 

Inanimado, um carrinho de linhas.

 

De madeira, como antigamente,

quando o plástico não era rei,

quando o tempo corria sem correr

e brincar, saltar, ver e aprender

não eram um luxo – eram a lei.

 

Ao pegar-lhe um sobressalto.

Rolou sozinho, com subtileza,

e de dentro  a voz do meu pai:

- Vamos fazer um carro d’assalto?

- Vamos! Respondi com surpresa.

 

As mãos que há décadas o faziam

guiaram as minhas com destreza.

Memória desperta, canivete afiado,

tornei-me escultor de sonhos,

piloto numa viagem ao passado.

Às rodas dentadas do carrinho,

juntei o elástico e a rodela de sabão.

Para enrolar a corda à manivela,

bastou-me encontrar um pauzinho.

Montado com todo o cuidadinho,

enrolei, larguei e sem admiração

lá ia ele, destemido, sozinho!

 

Subiu, desceu, passou qualquer barreira.

O meu pai e eu voltámos a ser meninos

e tanto que rimos à conta da brincadeira!

 

Caparica, fevereiro de 2013

 

 

 

XXII. Desfuturo

Chuva e frio…

Que tempo tão escuro!

Silhuetas guerreiras

de baioneta calada,

esgueiram-se furtivas.

Esperam o dia na noite velada.

O vento zurzindo

com um silvo agudo

e as gotas pegadas à vidraça;

pequeníssimas lentes

onde se avista um povo inteiro,

outra vez amordaçado,

esconjurando a sua desgraça.

Não há mal que sempre dure,

Portugal destroçado!

Não te lastimes, levanta-te!

Que o futuro existe…

Apenas está adiado.

 

Almada, abril de 2013

 

 

XXIII. Voo livre

Paira no alto,

sobre o mar,

Monsaraz!

Airosa e limpa

como o voo da águia

que do céu grita:

“Fica, não te vás!”

 

Monsaraz, maio 2013

 

 

XXIV. Mea culpa

Observo-os!

Tão novos e confiantes,

tão descuidados do futuro,

tão agarrados ao presente.

Bando de gaivotas errantes…

 

Desencantados!

Não são argonautas decididos,

não têm para onde ir,

não sabem onde ficar.

Respiram sem vida, perdidos…

 

Ludibriados!

Com promessas de advento,

com tecnologias sem fim,

com luzes e centros comerciais.

Mas promessas leva-as o vento…

 

E repreendo-os!

Sempre que não nos acertamos,

como se não os precedêssemos,

como se os quiséssemos carregar

com as culpas que descartamos…

 

Almada, junho de 2013

 

 

XXV. Suber

Fim de tarde lento.

A luz quente tudo envolve,

num embalo quase torpe,

só as palhas se agitam ao vento.

No horizonte, que o calor distorce,

a silhueta de um sobreiro só;

sóbrio, imponente e forte,

sobrevivo ao ataque violento

da secura, do calor agreste sem dó.

Calado fita-me de longe,

e interpela-me com altivez:

“Não tenho medo do Sol ardente,

não me assusta a aridez,

tenho medo do Homem, de ti!

Tudo depredam com avidez

e eu há séculos que estou aqui…”

 

Torrão, junho de 2013

 

 

XXVI. Epicuro quer viver

Epicuro soltou-se.

A amarra que o prendia

em vão o manietava

pois lesto e esguio,

em revoltas convulsões,

quebrou num repente

o jugo que o submetia.

 

Livre, correu sem destino

guiado pela luz e pelo vento,

pelos odores que traziam

e pelo cantar ritmado

das ondas em movimento.

 

Sedento, bebeu o mar;

reencontrou-se alucinado!

 

Mergulhou na água fria,

sem sentir a falta do Norte,

e no silêncio do fundo

lavou o pensamento:

P'ra viver a vida aprisionado

é melhor ser livre na morte.

 

Almada, junho de 2013

 

 

XXVII. Epifania

Um olhar magnético, o sorriso quente;

o cabelo ondulante, como a serpente,

à espera do amante, ela é paciente!

 

Dura há séculos a espera persistente,

pelo Homem temerário, não o imprudente,

que queira saber a vida... assim num repente!

 

Revela-lhe um seio, sem ser indecente;

aguça-lhe a vontade, desperta-lhe a mente.

 

Para ela correrá, que o saber é urgente.

Enfrentará o medo, corajoso, indiferente,

mas ela o acolherá em seu regaço envolvente

e acalmar-lhe-á o ímpeto, complacente.

 

Depois será ele que a olhará de frente

e cairá em si... muito lentamente!

Perguntar-lhe-á o nome, perscrutando-lhe a mente.

 

Ela responderá Medusa, receosamente...

O Homem devolverá o sorriso, calmo e quente,

Não receio o teu amor fatal e ardente,

fui eu quem te criou, imaginariamente!

 

Almada, julho de 2013

 

 

XXVIII. Cante

Do ritmo compassado das botas

sobressai a voz grave do ponto,

entoa, como quem conta um conto,

com pausas e modulações de notas.

 

Do outro lado o alto, em voz aguda,

interrompe o ponto, remata a estrofe

e alerta o coro para que entre forte,

contemporizando que o fôlego dura.

 

E forte soa, com a força do grupo!

Companheiros de braços enlaçados,

as vozes firmes, os punhos cerrados,

unidos na revolta, na saudade, no luto...

 

Torrão, agosto de 2013

 

 

XXIX. Origem

A minha terra não é onde nasci

é onde quero  pertencer.

Podia ser em qualquer lado,

desde que vivesse o entardecer,

mas a minha terra é além do Tejo

e fica aquém do Sado.

 

Torrão, setembro de 2013

 

 

XXX. Réquiem

Pelo futuro, que me sinto morto,

matam-me devagar e à minha pátria

sentados no garrote, lado a lado,

destroçada a alma, destroçado o corpo.

A gente grita, mas ninguém ouve

e o coveiro escavando o nosso fado,

sufoca-nos o ânimo,  enterra-nos vivos,

com ar de desdém e um sorriso torpe.

 

Almada, novembro de 2013

 

 

XXXI. Sonho eterno

O Sol pôs-se quente, calmo, sossegado,

naquele dia em que ele adormeceu.

A mãe África embalava-o, cantando,

para que o sono fosse descansado,

não parou mesmo quando anoiteceu!

Levou-o nos braços, assim baloiçando,

e ele esperou o amanhecer sonhado,

de negros e brancos habitando a vida,

sem o ódio que tantas vezes os venceu,

nem os grilhos que prenderam Madiba.

 

Caparica, dezembro de 2013

 

 

XXXII. O Geógrafo perdido

Um dia saiu de si, decidido,

com mapas e instrumentos

para se perder pelo mundo.

Vagueou nos continentes,

sem azimute nem sentido;

mergulhou no mar profundo,

afogado em pensamentos,

e cruzou num foguetão

o firmamento bifendido.

 

Perdido no vácuo, foi lá que se encontrou.

 

Passados trinta anos

olhou para baixo, respirou fundo,

e num golpe devaneio

embarcou no imaginário 

para voltar de novo ao mundo.

 

Mal refeito da travessia

quis outra orientação.

Guardou o mapa, para não o rasgar,

ignorou a agulha e os pontos cardeais

e escolheu para seu guia

o querer ver para lá do olhar.

 

Apressou-se, que há muito para ver,

o tempo escasseia, nunca é demais!

E fez novo mapa para se voltar a perder.

 

Almada, janeiro de 2014

 

 

XXXIII. Insónia

Gosto da noite, tanto quanto do dia.

Mais ainda da noite longa e velada;

o corpo preso, o pensamento livre,

descansada a carne da refrega diária

e solto o desejo de construir a vida!

Adormeço por fim… mas ao raiar do Sol

volta o sonho que sonhei acordado

e desvendo o dia, renovo a espertina,

enquanto me desvendo e afasto o lençol.

 

Almada, fevereiro de 2014

 

 

XXXIV. Miradouro

 

Desta pedra vejo todo o mundo.

Na planura o horizonte é mais vasto,

olho para o longe e respiro fundo

que é na solidão do montado,

longe do bulício, longe da gente,

que mergulho no eu mais profundo

e solto as asas ao cavalo alado.

Sobrevoo a terra ao Sol poente,

saboreio o vinho ao som do cante

e de tanto voar… fico almareado.

 

Caparica, junho de 2014

 

 

XXXV. Prédica amoral

 

Insistis em vender-me o céu

e carregar-me com o jugo moral

que ditais com arbitrariedade.

Mas não há casula nem véu,

nem quipá, túnica ou cirwal

que vos esconda a humanidade

porque sois um entre iguais,

tanto para o bem, como para o mal.

Antes, pois, que decidais julgar-me,

lembrai-vos que sois do mundo

e tão perfeitos como os demais…

Cuidai antes de vós,

sacerdotes de veste rasgada,

túmulos de branco caiados,

muezins de voz esganiçada,

que a mim tanto se me dá

se me excomungais ou não!

Sou homem de pouca fé

e de nenhuma religião.

 

Caparica, outubro de 2014

 

 

XXXVI. História ditoso-marítima

 

Nas crónicas das glórias vividas

lemos as palavras exaltadas

que revigoram  a alma de povo.

Mas foi mas batalhas perdidas,

nas barcas mil vezes naufragadas,

no degredo distante dos poetas,

que se forjou o ser português

como se forja o ferro no fogo.

 

“Antes quebrar que torcer?

Não, antes vergar que partir!”,

disse outro velho no Restelo

e, com um esgar mas a sorrir:

“Neptuno convocará o vento,

o Adamastor continuará a rugir

e o capitão fará com desvelo

desaparecer o brio e o talento

dos marujos que queiram fulgir”.

 

E a tormenta veio numa alvorada.

Nos relâmpagos a rasgar o céu

a guarnição adivinha o fim do mundo

mas um grumete sobe à amurada

e esconjura o mar feio e fundo:

“Vai-te, descomunal génio do mal,

que o ventre bojudo desta nau

carrega oito séculos de  Portugal.

Rasgas a vela e vergas o mastro

mas não o conseguirás quebrar

que a alma é muito mais forte

que a mais forte força animal ”.

 

Entre a guarnição que ainda treme

cada marujo segura o marujo

e quando, desequilibrado, o piloto cai

há sempre alguém que agarra o leme.

E o capitão?

Derrotado, arredado, agoniado e sujo,

abandona a barca e pelo mar se vai…

 

Almada, outubro de 2014

 

 

XXXVII. Circo e contos de um cantor não cantados

Quem escreve boas canções

também escreve boas histórias,

contadas, cantadas e encantadas.

 

Como as de amanhã pela noite,

quando brilhar o Circo do Sol

com outras  histórias, dançadas,

uma bailarina no trapézio sem rede

subindo e descendo  por um lençol.

 

Depois , então, as histórias pra ler

de muito enredo imaginadas!

Desta vez sem música nem acrobatas

Mas, é certo, com a mesma arte

e a fantasia que abre estradas.

 

Caparica, dezembro de 2014

 

 

XXXVIII. O sabichão 2.0

O queixo sobrelevado,

testa de esforço franzida,

plagia umas máximas

e sente-se  iluminado.

Tal qual o monstro Hidra

não tem só uma cabeça

pois rapina as do povoado!

Chama-lhe… inspiração,

para que não transpareça.

É que pensar por si só

dá cá um trabalhão!

 

Caparica, fevereiro de 2015

 

 

XXXIX. Manifesto

 

Andas comigo há trinta mil anos.

Partilhámos o trabalho, o ócio,

o calor, a fome e a abundância,

fomos racionais e insanos,

entregámo-nos num sacerdócio

e o olhar é o limite da distância.

 

Desconsiderar-te, não teria perdão!

Porque foste tu que me escolheste

e desde esse dia pertenço-te, cão.

 

Caparica, março de 2015

 

 

LX. Bênção da pasta

Passou o tempo dos modelos,

dos ensaios e da explicação.

Abriu-se o vórtice do real

e começa uma luta sem tréguas,

que é na batalha da Educação,

contra um exército descomunal,

sem glórias e o objetivo a léguas,

que se ganha uma Nação.

 

Vai com força e confiança

que só se perdem as batalhas

se se peleja sem o coração.

 

Caparica, maio de 2015

 

 

LXI. Descoberta nova estrela

Verão quente,

dia frio, escuro e feio,

coberto de denso véu.

Soprou rude e forte

um vento mensageiro,

apagou uma Luz na Terra

e acendeu outra no céu.

 

Caparica, julho de 2015

 

 

LXII. Renascimento

O livro, esfolheado pelo vento,

escancarou sem pudor aquele poema

de onde se soltaram as palavras.

Desprendidas, libertárias, fogosas,

salvas daquele lugar e daquele tempo

e sem preceitos de métrica ou de tema,

acasalaram de novo num amor lascivo

e nasceram novas ideias noutras glosas.

 

Caparica, setembro de 2015

 

 

LXIII. Criatura

Imaginar,

escrever,

riscar,

rever,

guardar.

 

Esquiço,

poema,

prosa,

palavra,

feitiço,

fonema,

frase,

teorema.

 

Criatura gerada,

pelo momento,

pelo criador,

pela palavra,

no pensamento,

nua por fora,

vestida por dentro,

sem corpo visível,

só vida etérea

e alma sensível.

 

Caparica, setembro de 2015